quarta-feira, 11 de junho de 2014

TRABALHO INFANTIL NO CONTEXTO DO MEGA-EVENTO COPA DO MUNDO FIFA 2014


Por Eduardo Paysan Gomes[1]

            De acordo com Relatório Global divulgado pela Organização Internacional do Trabalho - OIT, em 2008, havia 215 milhões de crianças e adolescentes entre 05 e 17 anos trabalhando, no mundo, sendo 115 milhões envolvidos nas suas piores formas.

Nos últimos anos, o Brasil vem se empenhando, seriamente, com vistas à redução do trabalho infantil, tendo atingido considerável redução de sua ocorrência. Conforme dados oficiais da PNAD/IBGE, houve redução de 56% da taxa de crianças e adolescentes entre 05 e 17 anos inseridas no trabalho infantil, entre os anos de 1992 e 2011.

Tal fato pesou sobremaneira na decisão de ter sido realizada aqui, no Brasil, em outubro do ano passado (2013), a III Conferência Global sobre Trabalho Infantil, com os seguintes objetivos: 1) Fazer um balanço dos progressos realizados desde a adoção da Convenção n.º 182 da OIT (Piores Formas de Trabalho Infantil); 2) Avaliar os obstáculos e propor medidas para acelerar o progresso na eliminação das piores formas de trabalho infantil; 3) Propiciar a troca de experiências sobre as estratégias adotadas pelos países participantes para o enfrentamento do trabalho infantil.

O documento orientador da III Conferência Global refere-se ao conceito de trabalho infantil a partir do texto das Convenções n.ºs 138 e 182 da OIT, sendo todo tipo de atividade laboral realizada por crianças e adolescentes em desacordo com a idade estabelecida em lei para a permissão da entrada no mercado de trabalho, atividade que viola os seus direitos fundamentais e pode ser remunerada ou não, realizada para o mercado ou não, eventual ou não.

No Brasil, conforme a Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), em seu artigo 60: “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na condição de aprendiz.”

Esse dispositivo encontra amparo na nossa Constituição Federal de 1988, que no inciso XXXIII, do seu artigo 6º, dispõe: “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

            O envolvimento de crianças e adolescentes no trabalho infantil prejudica o seu desenvolvimento saudável, além de contribuir para a queda do rendimento escolar, distorção idade/série e evasão escolar, que, por conseguinte, vão contribuir para formar futuros(as) trabalhadores(as) desqualificados(as) e com baixa remuneração, desenvolvendo um ciclo perverso, que perpetua a pobreza entre várias gerações de suas famílias.

            Para pôr um fim a essa realidade, uma série de esforços internacionais vêm sendo desenvolvidos, dentre os quais vale destacar a instituição, em 2002, do dia 12 de junho como “Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil”. Em 2006, a OIT lançou um Plano Global de Ação, que estabeleceu medidas urgentes a serem adotadas pelos países para a eliminação do trabalho infantil.

            Devemos considerar que grande parte da redução do trabalho infantil verificada no Brasil deve-se a(o):

  • Reconhecimento oficial do problema (anos 90);
  • Legislação avançada;
  • Política ativa de Estado;
  • Informações Estatísticas consistentes;
  • Avanço na Base de Conhecimento;
  • Políticas Nacionais: redução da pobreza, aumento do salário mínimo, geração de emprego, extensão da proteção social, educação: extensão da escolaridade obrigatória, escolas de tempo integral);
  • Intersetorialidade.

            Neste mesmo momento histórico, no Brasil, assumimos o compromisso de erradicação das piores formas do trabalho infantil até o ano de 2016 e de todas as formas de trabalho infantil até o ano de 2020.

            De acordo com os dados da PNAD/IBGE, de 2011, as crianças e adolescentes ocupados(as) concentram-se nos seguintes percentuais: 24,2% entre os 15 e 17 anos (2.557.000 adolescentes); 6% entre os 10 e 14 anos (1.027.000 crianças e adolescentes); e 0,6% entre 05 e 09 anos (89.000 crianças).

            Porém, identifica-se a necessidade de adotar novas estratégias para continuar a avançar na erradicação do trabalho infantil. Exemplo do desafio a ser enfrentado é a constatação de que grande parte das famílias mesmo estando inseridas em programas de transferência de renda, como o Programa Bolsa Família (PBF) e cumprindo a condicionalidade de manutenção de seus/suas filhos/as na escola, esses/as crianças e adolescentes ainda são encontradas em atividades laborais precoces.

            Portanto, embora o país tenha avançado na erradicação da extrema pobreza (miséria), muitas das crianças e adolescentes encontram outras motivações para o trabalho infantil, não sendo somente a tradicional justificativa de ajudarem seus pais no sustento da família, a fim de garantir a sua alimentação, por exemplo.

Devido à complexidade de tais demandas, o enfrentamento a tais questões só é possível mediante uma ação articulada entre as diversas políticas públicas, construindo-se uma intersetorialidade entre as políticas de: assistência social, educação, qualificação profissional, geração de trabalho e renda, saúde, segurança pública, etc.

            Devemos ressaltar, ainda, que existem diversos outros desafios para atingir às metas propostas, haja vista, principalmente, que, dentre as piores formas de trabalho infantil, encontram-se: trabalho no narcotráfico, exploração sexual, etc.

            Dentre as questões complexas a serem enfrentadas existe um fator que não costuma ser apresentado nos documentos dos organismos internacionais ou mesmo do governo brasileiro, que diz respeito à própria lógica capitalista do consumo na qual nossos(as) jovens se encontram inseridos(as), a partir da forte publicidade a que são expostos(as), através dos grandes meios de comunicação de massa.

            Considerando serem pessoas em condição peculiar de desenvolvimento encontram-se ainda mais vulneráveis aos mecanismos e estratégias utilizados pela propaganda e marketing de massa, de forma que acabam por construir sua identidade e pertencimento à sociedade a partir da lógica de “possuir”, ao invés da lógica do “ser”. Assim, só se considera que alguém tem valor dentro da sociedade a partir do status adquirido com o consumo de produtos de determinadas marcas. Portanto, o valor de cada ser humano é considerado secundário. Resumindo: você vale pelo que você tem.

            O reposicionamento de uma cultura que (re)valorize o ser humano, no nosso entendimento, deve ser trabalhado de forma exaustiva nos diversos espaços educativos da sociedade, considerado não somente o ambiente da educação formal. Pelo contrário, consideramos fundamental reforçar esquemas articulados com a educação popular, que tenham penetração entre as comunidades empobrecidas, envolvendo os pais das crianças e adolescentes trabalhadores(as), a fim de reforçar sua educação para o exercício pleno da sua cidadania.

É preciso que esses espaços comunitários educativos, a partir de metodologias adequadas, propiciem a revisão de suas próprias histórias de vida, marcadas por diversas violações, para que não as reproduzam através de seus/suas filhos/as (de forma irrefletida) e possam resignificar suas histórias, criando oportunidades para que eles/as construam um futuro de sujeitos com seus direitos garantidos.
           
            Além do mais, em se tratando de ações voltadas para o público infanto-juvenil, a demanda é por ações articuladas entre os órgãos que compõem o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), dentre os quais podemos citar: Conselhos Tutelares, Conselhos de Direitos, Defensoria Pública, Ministério Público, Tribunal de Justiça, Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, Frentes, Fóruns, Redes e Comitês, que articulam a Sociedade Civil Organizada.

Ou seja, conforme o art. 227, da Constituição Federal de 1988, é um dever de toda a sociedade, assegurar o cumprimento dos direitos infanto-juvenis, com absoluta prioridade.

            No contexto da Copa das Confederações 2013 e da Copa do Mundo FIFA 2014, foi articulada a chamada Agenda de Convergências pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a partir de demandas pautadas pelas Redes Nacionais de defesa da criança e do adolescente.

            A preocupação maior trazida por essas Redes Nacionais se pauta no aumento das violações aos direitos infanto-juvenis que é identificado em mega eventos, em diversos países do mundo, considerando estar entre os públicos mais vulneráveis da sociedade.

            Sendo assim, uma série de iniciativas protetivas passou a ser articulada de forma preventiva, buscando articular os segmentos governamentais e não governamentais, em todos os níveis federativos e, inclusive, com o apoio de organizações internacionais de proteção à infância e juventude. Daí porque se denomina esse processo de construção coletiva de “Agenda de Convergências”.

            Já em 2013, se instituiu o seu Comitê Local de Proteção Integral a Crianças e Adolescentes nos Grandes Eventos de Pernambuco, que é constituído por articulação entre entidades governamentais e redes/fóruns/movimentos da sociedade civil organizada.

O Comitê Local de Pernambuco vem trabalhando de forma intensiva para o aprimoramento do trabalho em rede, buscando sempre envolver novos atores que estão implicados na resolução da histórica violação dos direitos infanto-juvenis. Essa experiência tem construído um espaço privilegiado de articulação dos três eixos do SGDCA: promoção, defesa e controle social.

Em relação ao trabalho infantil, por exemplo, podemos citar bons frutos, como o processo de aproximação e construção de uma agenda conjunta entre duas instâncias importantes da defesa dos direitos da criança e do adolescente no Estado: Rede de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes de Pernambuco e Fórum de Prevenção e Erradicação ao Trabalho Infantil em Pernambuco - Fepetipe -, desde o reconhecimento da exploração sexual como uma das piores formas do trabalho infantil.

Contribui para essa aproximação entre instâncias com enfoques de trabalho diversos o reconhecimento de que mais importante do que enxergar aos diferentes tipos de violações de direitos de forma segmentada, é fundamental garantir a proteção integral a crianças e adolescentes.

Ambas/os Rede e Fórum fazem parte do Comitê Local de Pernambuco e estão implicados junto a diversos atores no âmbito dos Municípios e Estado para a construção, por exemplo, dos fluxos de atendimento a crianças e adolescentes com direitos violados nos grandes eventos.

A articulação das 12 cidades-sede da Copa do Mundo FIFA 2014 também vem propiciando o intercâmbio de boas práticas e a padronização de procedimentos de intervenção e instrumentais de coleta de dados, a fim de constituir uma base de dados nacional e possibilitar uma avaliação mais consistente dos verdadeiros impactos do mega evento em questão no nosso país.

A preocupação maior de todos/as envolvidos/as é garantir a continuidade dessas articulações para além do mega evento, constituindo em um efetivo legado social do mesmo, conquistado através do exercício legítimo e comprometido do controle social da sociedade civil no Brasil.

Sem dúvida, é preciso continuar a avançar no caminho da garantia dos direitos infanto-juvenis, chamando a atenção da sociedade como um todo e de diversos órgãos de governo para a importância da efetivação do princípio constitucional da prioridade absoluta do atendimento aos direitos infanto-juvenis.

Essa é uma tarefa de todos(as) nós, que se potencializa com iniciativas como a rede da Aliança Nacional de Adolescentes – ANA, que significa a realização do próprio direito à participação de crianças e adolescentes, efetivada por meio de um processo que potencializa o exercício da cidadania por parte desses sujeitos de direito.

Recife, junho de 2014.

xxx



[1] Advogado militante pelos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes, Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, professor da Escola de Conselhos de Pernambuco/Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE e Chefe de Divisão de Criança e Adolescente da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos (SDSDH) da Prefeitura do Recife.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Projeto Co-Financiado União Europeia

Projeto Co-Financiado União Europeia
Os conteúdos deste blog foi elaborado com a participação financeira da União Europeia. O seu conteúdo é de responsabilidade exclusiva de seus realizadores, não podendo, em caso algum, considerar que reflita a posição da União Europeia

...

Visitas